quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A Sonoridade Amarela

Kandinsky tentou fazer um teatro total.
Entre seus experimentos, temos A sonoridade Amarela.

O roteiro está dividido em uma abertura e seis quadros/cenas.
Eis aqui o início


A sonoridade amarela, de W. Kandinsky
Uma composição Cênica[1]

Tradução: Marcus Mota

Agentes
Cinco gigantes
Seres indefinidos
Tenor ( na coxia)
Uma criança
Um homem
Pessoas com vestes soltas
Pessoas usando collants
Coro (na coxia)

Abertura
Alguns acordes da orquestra.
(sob cortina)
Em cena, temos um crepúsculo azul-escuro que de início tende ao esbranquiçado e que depois se torna um azul escuro mais intenso.  Em seguida, uma pequena luz se manifesta no centro, fazendo-se cada vez mais brilhante enquanto a cor azul obscurece. Depois um tempo, música vem da orquestra. Pausa.
Da coxia, ouve-se um coro que deve ser alocado ali para que a fonte do som não seja identificada[2]. As vozes mais graves vão se ouvir com mais destaque. O canto é regular, sem afetividade, com interrupções indicadas por reticências[3].

 VOZES GRAVES
 “Sonhos de pedra ....   e rochas falantes ...
Ressoam perguntas cheias de enigmas ...
O movimento do céu ... e a fusão ... das pedras.
Ergue-se invisível ... um muro ...”

VOZES AGUDAS
“Lágrimas e risos ...  Para maldições, orações...
A alegria da união e as batalhas mais escuras. ”
TODOS
“Luz trevosa no ... mais ensolarado ... dia.
(desaparecendo veloz e repentinamente)
Brilha sombra luminosa na noite mais escura!! ”
Fade out. Blecaute. Pausa mais longa. Em seguida, abertura da orquestra.

Quadro I
(À direita e esquerda do espectador)
A área de atuação deverá estender-se até o fim do palco o máximo que der. Lá ao fundo, uma extensa colina verde. Atrás da colina, uma cortina lisa, opaca, azul, de um tom bem escuro.
Em seguida começa a música, inicialmente em frequências agudas. Após, passa imediatamente para as mais graves. Ao mesmo tempo, o fundo de cena muda para azul escuro (em sincronia com a música) e nele surgem bordas negras (como em um quadro). Da coxia ouve-se um coro sem palavras, que canta sem emoções, seco, mecânico. Ao final do canto do coro, uma pausa geral: nenhum movimento, nenhum som. Daí blecaute.
Após, a cena se ilumina. Da direita para a esquerda, cinco gigantes (os maiores possíveis) de um amarelo muito vivo são empurrados para o palco ( como se flutuassem sobre o piso).
Eles ficam imóveis ao fundo, um do lado do outro –uns com os ombros erguidos, outros com os ombros caídos, todos com estranhos e indefinidos rostos amarelos.
Viram o rosto uns para os outros bem lentamente, fazendo movimentos simples com os braços.
A música se torna mais definida.
Então se ouve o canto sem palavras e em baixa frequência em pianíssimo (pp) dos Gigantes e eles vão se aproximando bem lentamente do centro do palco[4]. Voam velozes da esquerda para a direita umas criaturas vermelhas indefinidas, que assemelham um pouco a pássaros, e que têm cabeças grandes parecidas com as de seres humanos. Este voo se reflete na música.
Os gigantes continuam cantando, com frequências mais graves. Ao mesmo tempo, tornam-se cada vez menos visíveis[5].  A colina ao fundo cresce lentamente e vai se tornando mais nítida. Ao fim, está branca. O céu, totalmente escuro. 
Da coxia novamente se escuta o coro opaco. Não se ouve mais os gigantes.
O proscênio torna-se azul e aos poucos menos brilhante.
A orquestra luta com o coro e o vence.
Uma névoa densa torna toda a cena invisível.



[1] Thomas von Hartmann ficou encarregado da parte musical.
[2] NT. No original:  “welcher so eingerichtet werden muss, dass die Quelle des Gesanges nicht zu eknnen ist. ” Isto é: o coro “deve ser disposto de um jeito que não seja possível discernir a origem do canto”.
[3] NT. No original “ohne Temperament”.  No lugar de traduzir por cognato, o que levaria a questão do temperamento musical, questão sobre afinação e medição de intervalos musicais, dentro do contexto vemos que o termo se refere tentativa de se reduzir respostas emocionais na canção por meio da ênfase na equalização dos atos performativos. Assim, “sem temperamento” aqui refere-se a uma performance sem disposições mais explicitas de emoções, algo mais próximo de uma máquina.
[4] NT. No original, “Rampe”. Seria vago traduzir por “rampa”, pois no caso Kandinsky está se referindo ao lugar de destaque da área de atuação, a ribalta,  onde um fila de refletores no chão ilumina o ator.
[5] No original, “undeutlich”, “indistinto”, “vago”, “difuso”, “obscuro”, ”borrado”.

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